Odontologia - Manifestações bucais de disfunções da tireoide: o olhar da Odontologia para além da boca

Odontologia - 25.05.2025

Manifestações bucais de disfunções da tireoide: o olhar da Odontologia para além da boca

No Dia Internacional da Tireoide, especialistas explicam como as alterações hormonais e tratamentos como a iodoterapia impactam a saúde bucal — e por que o olhar atento do Cirurgião-Dentista faz toda a diferença

O Cirurgião-Dentista pode ser o primeiro a identificar desequilíbrios sistêmicos importantes.
O Cirurgião-Dentista pode ser o primeiro a identificar desequilíbrios sistêmicos importantes.

A tireoide influencia diretamente processos metabólicos, hormonais e imunológicos. Quando sua função está alterada, diversos sinais clínicos podem se manifestar na cavidade bucal, muitas vezes antes mesmo do diagnóstico médico. Para os Cirurgiões-Dentistas, reconhecer essas alterações é parte essencial do cuidado integral.

A endocrinologista Dra. Luciana Oharomari, formada pela Universidade de São Paulo e especialista em obesidade, diabetes, tireóide e menopausa, observa que os impactos das disfunções tireoidianas sobre os tecidos bucais já são bem descritos na literatura científica. “As disfunções da tireoide, como o hipotireoidismo e o hipertireoidismo, podem interferir significativamente na saúde bucal, especialmente na mucosa bucal e nos tecidos periodontais. A literatura científica tem demonstrado uma associação entre essas alterações endócrinas e condições inflamatórias crônicas, como a periodontite e o líquen plano oral.”

O especialista em Periodontia Dr. Irineu Gregnanin Pedron, que é mestre em Ciências Odontológicas, concorda com essa associação, destacando que tanto o hipo quanto o hipertireoidismo podem aumentar o risco de desenvolvimento ou agravamento da doença periodontal. “O hipotireoidismo — deficiência na síntese dos hormônios tireoidianos — pode causar: alterações gengivais inflamatórias; alterações na mucosa bucal; xerostomia; deficiências na resposta imunológica, tornando o organismo mais suscetível às infecções (como a infecção periodontal, por exemplo); redução na densidade óssea, concomitantemente à perda óssea pela doença periodontal.”

Esses efeitos podem, inclusive, contribuir para manifestações mais severas e refratárias às terapias convencionais. “O hipotireoidismo tem sido implicado como fator de risco para o desenvolvimento de líquen plano oral (LPO), uma doença inflamatória crônica de natureza autoimune que acomete a mucosa bucal e pode causar dor, queimação e comprometimento funcional. Evidências apontam uma correlação entre a disfunção tireoidiana e a expressão clínica do LPO, sugerindo uma possível inter-relação imunológica”, acrescenta a Dra. Luciana.

Ainda segundo ela, a relação entre função tireoidiana e periodontite pode estar mediada por mecanismos hormonais e imunológicos. “Estudos observacionais indicam que pacientes com níveis séricos reduzidos de TSH — ou com resistência periférica à ação dos hormônios tireoidianos — apresentam maior prevalência e severidade de periodontite. Neste cenário, a vitamina D surge como um potencial modulador dessa interação, atuando sobre a resposta imune e o metabolismo ósseo, ambos relevantes na fisiopatologia periodontal.”

O Dr. Irineu complementa essa visão, enfatizando que, no caso do hipertireoidismo, os riscos periodontais também estão presentes. “Pode causar alterações gengivais inflamatórias, fissuras gengivais ou ainda hiperplasias gengivais. Os hormônios tireoidianos podem ainda, em excesso, promover maior reabsorção óssea.”

Diante de manifestações inflamatórias orais persistentes ou de difícil controle, a endocrinologista recomenda que o Cirurgião-Dentista considere a possibilidade de uma condição sistêmica subjacente. “O Cirurgião-Dentista deve considerar a possibilidade de disfunção tireoidiana subjacente em pacientes com manifestações orais inflamatórias persistentes ou de difícil controle, como LPO e periodontite refratária. A triagem endócrina pode ser indicada, especialmente quando houver histórico familiar ou pessoal de doenças autoimunes. Diante de lesões orais persistentes, recidivantes ou de etiologia indefinida, especialmente na presença de outros sinais sistêmicos, a investigação da função tireoidiana deve ser considerada como parte da abordagem diagnóstica interdisciplinar.”

O alerta é reforçado por Dr. Irineu, que vê a anamnese como ponto de partida para essa suspeita clínica. “A percepção inicial para a suspeita e possível diagnóstico é fundamentada pela anamnese. A partir dos sinais e sintomas apresentados, o paciente deve ser encaminhado ao médico endocrinologista. A comunicação deve ser realizada sempre de forma material, por escrito. Essa relação entre Cirurgião-Dentista e médico é fundamental para o melhor e mais adequado tratamento odontológico, particularizado a cada paciente.”

Quando o tratamento da tireoide afeta as glândulas salivares

Outro grupo de pacientes que merece atenção especial são aqueles submetidos à iodoterapia — tratamento comum para câncer de tireoide. A Cirurgiã-Dentista especialista em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais, Dra. Luana de Campos, que é habilitada em Laserterapia, atua com esse perfil e descreve efeitos adversos importantes sobre a cavidade bucal. “A iodoterapia pode afetar a saúde oral, devido a seus efeitos adversos nas glândulas salivares, os quais podem incluir sialoadenite, hipossalivação, xerostomia e disgeusia. Estes efeitos impactam não só aumentando o risco de doenças orais, como cárie e doença periodontal, como também a qualidade de vida desses pacientes, por alterar as funções orais normais.”

A Dra. Luciana também alerta sobre esse risco: “Pacientes que receberam tratamento com radioiodo para câncer de tireoide ou hipertireoidismo podem apresentar efeitos adversos relevantes na cavidade bucal, sendo a xerostomia e o aumento no risco de cárie dentária os mais frequentes. A disfunção das glândulas salivares, induzida pela radioatividade, compromete o fluxo salivar e altera o equilíbrio da microbiota oral.”

Segundo a especialista, o ideal é que a avaliação odontológica comece o quanto antes: “A avaliação e acompanhamento odontológico são muito importantes para esse grupo de pacientes e deve acontecer de forma precoce, logo que o paciente recebe alta do hospital. Apesar de ainda não haver um consenso na literatura sobre o melhor tratamento para essas alterações orais, já existem evidências positivas sobre a prescrição de medicamentos sialogogos (como Cloreto de Betanecol) e do uso da Laserterapia para estímulo das glândulas salivares”, ensina Dra Luana.

O cuidado com o uso de anestésicos em pacientes com hipertireoidismo também merece destaque. “Durante procedimentos clínicos, o uso de anestésicos locais com epinefrina pode potencializar efeitos cardiovasculares indesejáveis nesses pacientes”, explica a endocrinologista, Dra. Luciana. “É importante suspeitar do diagnóstico e encaminhar para avaliação do especialista, pois o ideal é que esses pacientes estejam em estado eutireoideo antes de intervenções eletivas, alcançável frequentemente com o uso de antitireoidianos como o metimazol (Tapazol). Em situações odontológicas emergenciais, a introdução de betabloqueadores, sob orientação do endocrinologista, pode ser indicada para controle da taquicardia.”

Por fim, o Dr. Irineu lembra que a abordagem do paciente com alterações tireoidianas deve incluir um plano periodontal contínuo e individualizado. “Devem ser discutidas possíveis interações medicamentosas, efeitos colaterais e adversos. Em face à propensão ao desenvolvimento das doenças periodontais, o paciente portador de alterações tireoidianas deve ser acompanhado sob a perspectiva periodontal e, principalmente, em relação à higiene bucal, como principal forma de controle das doenças periodontais.”

Mais do que tratar a boca, o Cirurgião-Dentista pode ser o primeiro a identificar desequilíbrios sistêmicos importantes. Seja pela atenção a sinais clínicos, pelo trabalho em equipe com endocrinologistas ou pela condução de cuidados terapêuticos em pacientes submetidos à iodoterapia, o papel da Odontologia vai muito além do consultório. 

Por Swellyn França