Coluna Palavra do Especialista - 17.06.2025
Cimento de ionômero de vidro: base e cimentação – vale pena usar?

O cimento de ionômero de vidro (CIV) foi e talvez seja um dos materiais odontológicos mais utilizados na Odontologia, sendo indicado para forramento cavitário, cimentação de peças protéticas e, ocasionalmente, como material restaurador. Sua base reativa é uma reação ácido-base, comum a todas as suas variações — restauradoras, de base, preventivas e cimentantes — embora as formulações sejam adaptadas para atender às exigências específicas de cada aplicação clínica, especialmente no que se refere ao tempo de trabalho e à resistência mecânica1,2.
Composição
O CIV é composto por um pó à base de vidro fluoraluminosilicato de cálcio, com partículas de aproximadamente 15 µm de tamanho. Algumas formulações substituem o cálcio por íons como estrôncio ou lantânio, com o objetivo de aumentar a radiopacidade do material. O líquido consiste em homopolímeros de ácido poliacrílico ou copolímeros de ácidos acrílico, itacônico, maleico e tricarboxílico3-5.
Mecanismo de Reação e Estrutura
A reação de presa inicia-se quando o pó é misturado ao líquido ácido (geralmente ácido poliacrílico). Os íons hidrogênio (H⁺) atacam a superfície do vidro, promovendo a liberação de cátions metálicos (Al³⁺, Ca²⁺, Na⁺ e F⁻). Forma-se uma matriz de hidrogel composta por poliacrilatos de cálcio, alumínio e fluoroalumínio que envolve partículas de vidro não reagidas, recobertas por uma camada superficial de hidrogel de sílica fracamente aderida. Cerca de 20% a 30% do vidro é dissolvido durante a reação. A matriz apresenta estabilidade estrutural por entrelaçamento de cadeias, ligações iônicas e pontes de hidrogênio. A reação é altamente sensível à umidade, exigindo controle rigoroso das condições ambientais e proteção contra desidratação ou excesso de umidade nas primeiras 24 horas após a aplicação2,5,6,7.
Propriedades Biológicas
O CIV apresenta biocompatibilidade variável. Embora cause menor agressão pulpar em comparação com sistemas à base de ácido fosfórico, estudos relatam respostas inflamatórias mais intensas que as observadas com cimentos à base de óxido de zinco e eugenol (ZOE). A intensidade da resposta inflamatória depende da espessura da dentina remanescente — espessuras superiores a 1 mm tendem a limitar a resposta inflamatória. Técnicas inadequadas de manipulação ou formulações excessivamente diluídas podem aumentar o risco de dor pós-operatória, associada à pressão hidrostática do cimento nos túbulos dentinários 8-10.
Efeito Anticariogênico
Uma das principais vantagens do CIV é sua capacidade de liberar íons flúor de forma significativa a curto prazo, mantendo uma liberação residual prolongada. Essa liberação contribui para seu efeito anticariogênico11-15. Contudo, estudos indicam que, em pacientes que utilizam dentifrícios fluoretados, não há diferença estatisticamente significativa na desmineralização de esmalte ou dentina sob biofilme, quando comparado ao uso de cimentos resinosos16.
Adesividade
O CIV apresenta adesão intrínseca ao esmalte e à dentina, principalmente devido à interação iônica com a hidroxiapatita. O condicionamento prévio com ácido poliacrílico a 10–20%, por 5 a 20 segundos, melhora essa adesão 17. No entanto, a resistência de união obtida é limitada, variando entre 2 e 5 MPa sob cisalhamento17,18. Em contraste, adesivos modernos à base de MDP atingem resistências de união por tração de até 40 MPa19. Assim, a adesividade do CIV é considerada insuficiente para promover retenção mecânica significativa.
Propriedades Mecânicas
As propriedades mecânicas do CIV são superiores às dos cimentos ácido-base convencionais, como o cimento de fosfato de zinco, mas permanecem inferiores às dos cimentos resinosos. Sua resistência à tração diametral gira em torno de 6 MPa, e seu módulo de elasticidade é de aproximadamente 15 GPa18,20. Devido à sua natureza frágil e propensão à propagação de trincas, o material não é indicado como restaurador definitivo em áreas de elevada carga funcional. No entanto, na Odontologia Social, é amplamente utilizado na técnica ART (Atraumatic Restorative Treatment), confiando na sua liberação de flúor e propriedades bacteriostáticas 21,22.
Espessura da Película
Quando devidamente manipulado, o CIV apresenta espessura de película inferior a 25 µm, atendendo aos requisitos da norma ISO e não interferindo no assentamento das restaurações indiretas23.
Indicações Clínicas
1. Forramento Cavitário
Utilizado como base em restaurações indiretas ou diretas, especialmente em cavidades Classe II. No entanto, a presença de duas interfaces distintas — entre CIV e dentina, e entre CIV e resina composta — favorece a concentração de tensões, levando a falhas adesivas e fraturas das restaurações 24.
2. Material Restaurado
Devido à baixa resistência mecânica, o CIV não é indicado como material restaurador definitivo em áreas sujeitas a forças mastigatórias. A solubilidade do material, dependente da técnica operatória e das condições ambientais, também compromete sua durabilidade. A aplicação deve ser feita em porção única; a inserção em camadas compromete a integridade da matriz durante a fase de gelificação 10.
3. Cimentação
As propriedades químicas e adesivas do CIV restringem sua aplicação em cimentações de pinos ou coroas, especialmente quando há interação com superfícies de resina composta ou fibra de vidro. A adesão à dentina radicular é frágil, e a retenção do pino depende principalmente da geometria do preparo. Assim, seu uso se assemelha ao do cimento de fosfato de zinco, sendo mais adequado a preparos convencionais retentivos, típicos da odontologia pré-adesiva das décadas de 1980 e 1990.
Conclusão
O cimento de ionômero de vidro apresenta limitações intrínsecas em termos de resistência mecânica e adesividade, as quais devem ser cuidadosamente avaliadas para a prevenção de falhas clínicas. Seu uso clínico exige domínio técnico, conhecimento de suas indicações e contraindicações, além de controle rigoroso das condições ambientais, especialmente no que diz respeito à umidade e temperatura. Importa ressaltar que o emprego do CIV não representa, de fato, uma abordagem adesiva no sentido contemporâneo da odontologia restauradora, uma vez que a união obtida entre o substrato dental e o material restaurador não é contínua e coesa. A ausência de formação de uma unidade funcional integrada quimicamente compromete a dissipação uniforme das tensões mecânicas, favorecendo a delaminação e a falha precoce da restauração.
Por Dr. Mario Fernando de Goes
Doutor em Odontologia - Reabilitação Oral
Departamento de Odontologia Restauradora da Faculdade de Odontologia de Piracicaba - Unicamp
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