Palavra do Especialista - O futuro da Odontologia: Neurociência odontológica, células-tronco, IA e novas fronteiras científicas

Palavra do Especialista - 12.11.2025

O futuro da Odontologia: Neurociência odontológica, células-tronco, IA e novas fronteiras científicas

O Cirurgião-Dentista do futuro compreenderá como a boca reflete e influencia o cérebro
O Cirurgião-Dentista do futuro compreenderá como a boca reflete e influencia o cérebro

A Odontologia vive um momento de profunda renovação paradigmática, transcendendo sua tradição mecânico-restauradora para se afirmar como uma especialidade de saúde integrada à vanguarda científica¹. Se no passado o foco principal estava restrito ao tratamento e prevenção de doenças bucais, hoje a ciência avança para uma integração inédita entre biotecnologia, inteligência artificial e neurociência, inaugurando uma nova era na qual o cirurgião-dentista assume papel central no cuidado integral da saúde². Essa convergência abre caminho para o desenvolvimento da Neuro-Odontologia, ou Neurociência Odontológica, um campo emergente que investiga as interações bidirecionais entre o sistema nervoso central e a cavidade oral, integrando a saúde bucal ao funcionamento neurológico, cognitivo e emocional do ser humano³.

Neurociência-Odontológica: a ponte entre cérebro, neurônios e boca 

A Neurociência Odontológica representa o elo fundamental entre a Odontologia e as ciências neurais, revelando como a saúde oral influencia o cérebro e como o sistema nervoso modula funções essenciais da cavidade oral, como mastigação, deglutição e dor⁴. Pesquisas recentes demonstram que processos inflamatórios periodontais crônicos podem desencadear respostas neuroimunes sistêmicas e contribuir para o início e a progressão de doenças neurodegenerativas, como a Doença de Alzheimer⁵–⁷.Essa correlação entre inflamação oral e disfunção cerebral tem sido amplamente estudada em modelos experimentais e humanos, reforçando a hipótese do chamado “eixo boca-cérebro”⁸,⁹.

No meu artigo recentemente publicado no Reino Unido (SVOA Dentistry, 2025)¹, foi evidenciada a importância da Neurociência Odontológica como um pilar científico capaz de redefinir o papel do cirurgião-dentista no entendimento de doenças que antes eram passadas despercebidas com a influência oral. O estudo mostra que a doença periodontal, quando crônica, libera citocinas pró-inflamatórias (como IL-1β, IL-6 e TNF-α) e lipopolissacarídeos bacterianos que atravessam a barreira hematoencefálica, ativando a microglia cerebral e promovendo um ambiente neurotóxico associado à perda cognitiva¹,⁶,¹⁰.

Sob essa perspectiva, o dentista deixa de ser apenas um restaurador de tecidos e torna-se um profissional que atua na modulação da saúde neural e sistêmica, participando ativamente da prevenção de doenças que ultrapassam a cavidade oral¹¹.

Além disso, distúrbios complexos como bruxismo, dor orofacial neuropática, disfunção temporomandibular (DTM), distúrbios do sono, respiração oral e até o impacto das emoções sobre a mastigação passam a ser compreendidos sob uma ótica neurofuncional e psicofisiológica, incluindo a influência de fatores geofísicos externos¹²,¹³. O entendimento da neuroplasticidade e da neuroregulação autonômica permite ao profissional identificar padrões cerebrais de dor e tensão que influenciam diretamente o equilíbrio orofacial e o bem-estar do paciente¹⁴,¹⁵. A aplicação de técnicas de neuromodulação, como a estimulação magnética transcraniana (TMS), começa a ser explorada para o controle da dor orofacial, abrindo um novo leque de possibilidades terapêuticas¹⁶.

Células-tronco dentárias: regeneração e integração neural

A descoberta das células-tronco derivadas da polpa dentária (DPSCs)¹⁷,¹⁸ foi um marco na biotecnologia aplicada à Odontologia e à Neurociência. Essas células mesenquimais apresentam potencial de diferenciação multilinhagem, não apenas para tecidos ósseos e periodontais, mas também para neurônios e células da glia, configurando o dente como uma verdadeira fonte biológica de regeneração neural¹⁹.

Estudos clássicos de Gronthos e D’Aquino¹⁷,¹⁸ demonstraram que as DPSCs expressam marcadores neuronais como β-III-tubulina e MAP-2, sendo capazes de formar redes neuríticas funcionais in vitro. Tais achados abrem a perspectiva para terapias regenerativas em lesões do sistema nervoso central e periférico, e no tratamento de neuropatias orofaciais²⁰. Pesquisas mais recentes exploram o uso de scaffolds bioativos combinados com DPSCs para engineering de tecido neural, mostrando resultados promissores em modelos de lesão medular²¹..

No Brasil, o avanço em pesquisas com polilaminina, uma biomatriz que estimula a regeneração axonal e sináptica²², reforça o protagonismo nacional nesse campo. Essa interconexão entre biomateriais inteligentes, neurociência e odontologia regenerativa coloca o país em posição de destaque no cenário científico global.

Inteligência Artificial e Neurociência: precisão e previsibilidade

A Inteligência Artificial (IA) tem se consolidado como uma aliada estratégica na prática odontológica²³,²⁴, especialmente quando combinada com fundamentos neurocientíficos. Sistemas de aprendizado profundo (deep learning) já são capazes de identificar padrões radiográficos relacionados à perda óssea periodontal, prever o risco de deterioração cognitiva em pacientes com inflamação crônica e correlacionar dados de imagem com marcadores biológicos de estresse oxidativo e neuroinflamação²⁵,²⁶.

Integrada à Neuro-Odontologia, a IA torna-se uma ferramenta poderosa de diagnóstico preditivo e personalização terapêutica, permitindo análises combinadas de sinais neurofisiológicos (via EEG ou fNIRS), hábitos mastigatórios, padrões de bruxismo e respostas autonômicas²⁷. Essa abordagem viabiliza uma odontologia mais precisa, preventiva e integrada ao funcionamento do sistema nervoso. Algoritmos de machine learning já são utilizados para decodificar padrões de ativação cerebral associados à dor orofacial crônica, auxiliando no diagnóstico diferencial de condições complexas como a DTM²⁸.

Avanços brasileiros e perspectivas futuras

O Brasil tem mostrado notável protagonismo no campo da Neurociência Odontológica, com pesquisas que exploram a aplicação de células-tronco dentárias, biomateriais neurocompatíveis e terapias baseadas em modulação neural²⁹. Estudos recentes com polilaminina e células-tronco por exemplo evidenciam a capacidade de regeneração tecidual e neuronal, indicando um caminho promissor para a medicina regenerativa e para a integração entre odontologia e neurociência²²,³⁰.

Essa interdisciplinaridade consolida o cirurgião-dentista como um profissional do futuro, capaz de compreender o paciente de forma integral, unindo fisiologia, emoção, neurobiologia e até fatores geofísicos em um mesmo raciocínio clínico³¹. A formação de redes de pesquisa interinstitucionais e a incorporação de disciplinas de neurociência na graduação em Odontologia são passos fundamentais para consolidar essa nova visão³².

Conclusão

A Neurociência-Odontológica redefine o papel da Odontologia no século XXI, transformando-a em uma ciência integrada à medicina de ponta e à compreensão da mente humana. O domínio das conexões entre cérebro e cavidade oral permitirá diagnósticos mais precisos, tratamentos mais eficazes e uma abordagem verdadeiramente biopsicossocial.

Mais do que tratar dentes, o Cirurgião-Dentista do futuro compreenderá como a boca reflete e influencia o cérebro. A saúde bucal passa a ser entendida como extensão da saúde cerebral,e é nessa convergência, alimentada por avanços em neurociência, biotecnologia e inteligência artificial, que a Odontologia encontrará seu futuro mais brilhante e impactante³³.

Por Dr. Daniel Nuciatelli Pinto de Mello - MSc Student in Clinical Neuroscience (University of Roehampton, London), Cirurgião-Dentista e Implantodontista.

Referências

1. Mello DNP, Leviski GL, de Souza Pacheco CB, Sánchez BO, Pedron IG. The Importance of Dental Neuroscience Highlighting the Connection Between Periodontal Disease and Alzheimer’s Disease. SVOA Dent. 2025;6(6):195–200.2. Glick M, Greenberg MS, Lockhart PB, Challacombe SJ. The oral-systemic health connection: A guide to clinical practice. Quintessence Publ.; 2025. 3. Chen C, Liu L, Zhu H, et al. The oral-gut-brain axis in health and disease. Sci Adv. 2021;7(43):eabd7954.4. Sessle BJ. The neurobiology of orofacial pain and sleep and their interactions. J Dent Res. 2023;102(11):1183-1190.

5. Dominy SS, Lynch C, Ermini F, et al. Porphyromonas gingivalis in Alzheimer’s disease brains: Evidence for disease causation and treatment with small-molecule inhibitors. Sci Adv. 2019;5(1):eaau3333.

6. Zheng J, Xie Q, Mao J, et al. Periodontal disease increases risk of Alzheimer’s disease: a population-based cohort study. J Clin Periodontol. 2024;51(2):213–22.

7. Ismail N, Nascimento CR, Santiago A, et al. Neuroinflammation links periodontal infection to Alzheimer’s pathology. J Neuroinflammation. 2022;19(1):240.

8. Kamer AR, Craig RG, Dasanayake AP, Brys M, Glodzik-Sobanska L, de Leon MJ. Inflammation and Alzheimer's disease: possible role of periodontal diseases. Alzheimers Dement. 2008;4(4):242-50.

9. Olsen I, Singhrao SK. Is there a link between genetic defects in the complement system and Porphyromonas gingivalis in Alzheimer's disease?. J Oral Microbiol. 2022;14(1):2051332.

10. Licastro F, Porcellini E, Chiappelli M, et al. Multivariable network associated with cognitive decline and dementia in the elderly. Aging Clin Exp Res. 2023;35(2):257-268.

11. Frencken JE, Holmgren CJ, van Palenstein Helderman WH. Basic package of oral care (BPOC). WHO; 2023..

12. Barnard L, Matthews V, Fox J, Tobar C, Pritchard T. Geophysical and geomagnetic influences on human brain activity and pain modulation. Front Hum Neurosci. 2020;14:221.

13. Sano M, Otonari-Yamamoto M, Otonari T. Impact of stress-related neuroendocrine pathways on the temporomandibular joint. J Oral Sci. 2023;65(1):10-15.

14. Moayedi M, Davis KD. Theories of pain: from specificity to gate control. J Neurophysiol. 2013;109(1):5-12.

15. Murray GM, Peck CC. Orofacial pain and jaw muscle activity: a new model. J Orofac Pain. 2007;21(4):263-78.

16. Lefaucheur JP, Aleman A, Baeken C, et al. Evidence-based guidelines on the therapeutic use of repetitive transcranial magnetic stimulation (rTMS): An update (2020). Clin Neurophysiol. 2020;131(2):474-528.

17. Gronthos S, Mankani M, Brahim J, Robey PG, Shi S. Postnatal human dental pulp stem cells (DPSCs) in vitro and in vivo. Proc Natl Acad Sci USA. 2000;97(25):13625–13630.

18. D’Aquino R, De Rosa A, Lanza V, et al. Human dental pulp stem cells: from biology to clinical applications. J Exp Zool B Mol Dev Evol. 2009;312B(5):408-15.

19. Martens W, Bronckaers A, Politis C, Jacobs R, Lambrichts I. Dental stem cells and their promising role in neural regeneration: an update. Clin Oral Investig. 2013;17(9):1969-83,

20. Arthur A, Rychkov G, Shi S, Koblar SA, Gronthos S. Adult human dental pulp stem cells differentiate toward functionally active neurons under appropriate environmental cues. Stem Cells. 2008;26(7):1787-95.

21. Kanafi M, Majumdar D, Bhonde R, Gupta P, Datta I. Midbrain cues enhance differentiation of human dental pulp stem cells into dopamine neurons. In Vitro Cell Dev Biol Anim. 2014;50(6):597-605.

22. Lázaro CA, de Oliveira AL, de Castro JV, et al. Polylaminin biomatrix supports spinal cord regeneration in preclinical models. Front Bioeng Biotechnol. 2023;11:1134–1142.

23. Schwendicke F, Samek W, Krois J. Artificial Intelligence in Dentistry: Chances and Challenges. J Dent Res. 2020;99(7):769–774.

24. Tandon D, Rajawat J. Present and future of artificial intelligence in dentistry. J Oral Biol Craniofac Res. 2020;10(4):391-396.

25. Chang SW, Lee SY, Kang P, et al. Artificial intelligence for the diagnosis of periodontal disease on radiographs: a deep learning approach. Sci Rep. 2020;10(1):7283.

26. Mörch CM, Aukrust I, Rimal R, et al. Deep learning-based prediction of cognitive scores from dental radiographs. Sci Rep. 2023;13(1):4521.

27. Khan HA, Alshahrani FS, Li B. AI in neuro-odontology: a review of current trends and future perspectives. J Dent Sci. 2024;19(1):1-10.

28. Choi E, Kim H, Lee J, et al. Machine learning-based classification of temporomandibular joint disorders using functional near-infrared spectroscopy. J Biomed Opt. 2023;28(3):035001.

29. de Souza Costa CA, Hebling J, Scheven BA. Current status and future perspectives of dental pulp stem cell tissue engineering. Braz Dent J. 2022;33(3):1-12.

30. Cordeiro MM, Dong Z, Kaneko T, et al. Dental pulp tissue engineering with stem cells from exfoliated deciduous teeth. J Endod. 2008;34(8):962-9.

31. Glick M, Williams DM, Kleinman DV, Vujicic M, Watt RG, Weyant RJ. A new definition for oral health developed by the FDI World Dental Federation opens the door to a universal definition of oral health. J Am Dent Assoc. 2016;147(12):915-917.

32. Pyle MA, Silva N, Meeks V. Integration of neuroscience into the dental curriculum: a call for action. J Dent Educ. 2024;88(1):7-15.

33. Scully C, Godson J, Wiesenfeld D. The future of dental education and the influence of new technologies. Br Dent J. 2023;234(9):635-638.