Odontologia - 04.09.2025
Fibromialgia: desafios para a saúde bucal e o atendimento odontológico
A síndrome, caracterizada por dor crônica generalizada, exige acolhimento multiprofissional e reforça o papel do Cirurgião-Dentista no cuidado integral

A fibromialgia é uma doença caracterizada por dor crônica generalizada, frequentemente associada à fadiga, distúrbios do sono e alguns distúrbios cognitivos. Para o presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), Dr. José Eduardo Martinez, um dos principais desafios está no diagnóstico. “O que caracteriza a síndrome é ter dor no corpo inteiro, não existe fibromialgia localizada, obrigatoriamente a dor tem que ser generalizada, isso está bem claro nos critérios diagnósticos do Colégio Americano de Reumatologia. No entanto, a subjetividade dos sintomas e a presença de outras doenças que, da mesma forma, se caracterizam por dor crônica generalizada gera indefinições e pode mimetizar a fibromialgia. Por exemplo, o hipotireoidismo subclínico, o hiperparatireoidismo, a fase inicial das doenças reumáticas inflamatórias, entre outras.”
Segundo o reumatologista, a fibromialgia também tem associação com outras síndromes semelhantes, como dor miofacial, síndrome da fadiga crônica e síndrome do intestino irritável. E o tratamento vai além dos medicamentos. “Os estudos científicos mostram que a eficácia dos tratamentos não farmacológicos é muito superior à eficácia dos tratamentos medicamentosos, assim, exercício físico, acupuntura, apoio psicológico por profissionais da área e mesmo alguns procedimentos mais sofisticados, como estimulação transcraniana, têm sido utilizados", aponta o Dr. Martinez.
Manifestações orofaciais
Se no corpo a fibromialgia se expressa como dor difusa e persistente, na região craniofacial os reflexos não são diferentes. A pós-doutora em Diagnóstico Bucal e especialista em Disfunção Temporomandibular e Dor Orofacial, Dra. Denise Sabbagh Haddad, diretora do Departamento de DTM e Dor Orofacial do Conselho Científico (COCI) da APCD, explica que, “as manifestações orofaciais mais comuns nesses pacientes incluem dor difusa em face, cabeça e pescoço, frequentemente acompanhada de cefaleia e/ou disfunção temporomandibular, caracterizada por estalos, limitação de abertura bucal e dor miogênica e/ou artrogênica. Muitos pacientes relatam sensação de queimação, ‘peso’, ‘aperto’ e/ou fadiga muscular durante a mastigação. Tais sintomas, na maioria das vezes, não apresentam alterações clínicas ou radiográficas evidentes, o que dificulta o diagnóstico e pode levar a tratamentos equivocados. Além da dor, é comum a presença de alodínia e hiperalgesia — devido à sensibilização central presente nestas condições —, distúrbios do sono (sono não reparador) e impacto emocional significativo. Reconhecer esse padrão é fundamental para o Cirurgião-Dentista diferenciar dores orofaciais crônicas de quadros odontogênicos, evitando intervenções desnecessárias e acolhendo o paciente de forma integral.”
Diversos estudos apontam para uma associação importante entre fibromialgia e disfunções temporomandibulares. “Pacientes com fibromialgia apresentam prevalência aumentada de DTM, em razão da sensibilização central, que amplifica a percepção dolorosa e favorece manifestações orofaciais. Dessa forma, sintomas como dor muscular, rigidez muscular, fadiga ao mastigar, estalos ou limitação de movimento da mandíbula podem se somar às queixas sistêmicas da síndrome fibromiálgica. Entre os sinais clínicos mais comuns estão a dor difusa nos músculos mastigatórios, a hipersensibilidade à palpação, a dor persistente sem alterações odontogênicas, além de relatos de cefaleia e distúrbios do sono. Muitas vezes, a intensidade da dor relatada pelo paciente é desproporcional aos achados do exame físico. O reconhecimento desse padrão permite ao Cirurgião-Dentista distinguir casos de DTM de origem local daqueles associados à fibromialgia, conduzindo a um manejo mais abrangente e interdisciplinar”, complementa a especialista.
Para o Dr. Martinez, a associação entre as síndromes merece atenção especial. “A saúde bucal é sempre muito importante. A relação entre problemas de saúde bucal e as doenças reumáticas, está presente não só na fibromialgia mas, sobretudo, nas doenças inflamatórias crônicas e imunomediadas. Particularmente, no caso da fibromialgia, temos uma associação forte com a síndrome da dor miofacial que envolve a articulação temporomandibular. A associação da fibromialgia com dor miofacial, que se caracteriza por tensão muscular, pode agravar ou até provocar a síndrome de envolvimento da região da articulação temporomandibular. E aí uma síndrome agravando a outra”, reforça.
O papel do Cirurgião-Dentista
O atendimento odontológico a pacientes com fibromialgia e outras síndromes dolorosas crônicas é desafiador e demanda alguns ajustes específicos. “Compreender que esses pacientes apresentam maior sensibilidade à dor e ao estresse é o primeiro passo para o manejo clínico bem-sucedido desses pacientes. Consultas mais curtas ou fracionadas, uso de técnicas anestésicas eficazes e menos traumáticas, bem como atenção ao posicionamento na cadeira odontológica, são medidas recomendadas. A comunicação deve ser clara e acolhedora, explicando cada etapa do procedimento para reduzir a ansiedade e insegurança. Sempre que possível, deve-se evitar intervenções invasivas desnecessárias e recorrer a terapias conservadoras como o uso de placas estabilizadoras, fotobiomodulação, fisioterapia orofacial, autocuidado etc. O encaminhamento para acompanhamento interdisciplinar envolvendo médicos, psicólogos e fisioterapeutas amplia a efetividade do tratamento. Mais do que tratar sintomas, o objetivo do Cirurgião-Dentista é promover qualidade de vida, acolher as limitações do paciente e construir uma relação de confiança, elemento essencial em condições crônicas e de difícil manejo”, orienta a Dra. Denise.
O Dr. Martinez concorda que esses pacientes trazem desafios particulares. “O Cirurgião-Dentista deve entender que, as pessoas com fibromialgia, frequentemente sentem mais dor do que os demais e, muitas vezes, essa dor tem a ver com o estresse. O estresse crônico faz parte desse processo, portanto, na hora do acolhimento, levar em conta essa questão e fazer um preparo para qualquer que seja o tratamento a ser feito.”
Lei nº 15.176/2025: um marco para a prática clínica
A publicação da Lei nº 15.176/2025, sancionada em julho e com vigência a partir de janeiro de 2026, representa um marco no cuidado multiprofissional às pessoas com fibromialgia. O texto prevê atendimento multiprofissional no Sistema Único de Saúde (SUS), estimula a capacitação dos profissionais de saúde e abre espaço para a equiparação da síndrome à condição de pessoa com deficiência.
Para o Dr. Martinez, essa diretriz é fundamental para a qualidade de vida. “A lei prevê o atendimento multiprofissional no SUS e a atuação dos vários profissionais de saúde, e aí eu incluiria a Fisioterapia, Psicologia, o Cirurgião-Dentista e mais de uma especialidade médica. É muito importante para que em conjunto encontrem soluções individualizadas, ou seja, cada paciente merece uma avaliação e, a partir desta avaliação, um atendimento particularizado”.
Na visão da Dra. Denise, “a promulgação da Lei nº 15.176/2025 representa um marco na valorização do cuidado multiprofissional às pessoas com fibromialgia. Para a Odontologia, isso significa ampliar o reconhecimento das manifestações orofaciais como parte integrante do acompanhamento clínico. Na rotina clínica, a legislação reforça o papel do Cirurgião-Dentista na equipe de saúde, favorecendo a integração com médicos, fisioterapeutas, psicólogos e outros profissionais. O atendimento odontológico deixa de ser visto isoladamente e passa a compor um plano terapêutico global, direcionado ao controle da dor crônica e à melhoria da qualidade de vida. Em contrapartida, a acessibilidade e priorização serão um direito desses pacientes, pois poderão pleitear atendimento prioritário e adaptações razoáveis (tempo extra, ambiente sensorialmente mais confortável, flexibilização de horários), alinhadas à política de Pessoas com Deficiência (PcD). Além disso, a lei estimula a capacitação dos Cirurgiões-Dentistas para identificar precocemente os sinais e sintomas da síndrome e adotar condutas menos invasivas, mais humanizadas e alinhadas ao encaminhamento interdisciplinar. Para os consultórios, o impacto será a consolidação de práticas baseadas em acolhimento, escuta ativa e integração de saberes, o que fortalece a Odontologia como ciência da saúde e não apenas como área de intervenção local. Em resumo, a legislação valoriza o cuidado compartilhado e amplia a responsabilidade do Cirurgião-Dentista no acompanhamento desses pacientes, favorecendo uma abordagem mais completa, segura e efetiva.”
Por Swellyn França