Odontologia - 21.09.2025
O Cirurgião-Dentista como elo estratégico no cuidado interdisciplinar ao paciente com Alzheimer
A integração entre especialidades amplia as possibilidades de detecção precoce e melhoria na qualidade de vida de pacientes com demência

O Alzheimer, forma mais comum de demência no mundo, já afeta mais de 50 milhões de pessoas globalmente e cerca de 2 milhões de brasileiros, segundo estimativas recentes do Ministério da Saúde. A Organização Mundial da Saúde (OMS) projeta que, até 2050, a prevalência pode alcançar 150 milhões de casos em todo o mundo.
Diante desse crescimento, pesquisas e práticas clínicas têm demonstrado que o cuidado interdisciplinar não apenas melhora a qualidade de vida de pacientes e famílias, mas também oferece oportunidades de intervenção precoce. Nesse contexto, o Cirurgião-Dentista emerge como profissional estratégico, atuando em parceria com Neurologistas, Geriatras, Psiquiatras, Fonoaudiólogos e cuidadores – uma colaboração que tem se mostrado fundamental para o manejo integral da doença.
O consultório odontológico como espaço de observação privilegiada
Na rotina clínica, o Cirurgião-Dentista pode ser um dos primeiros profissionais a identificar mudanças sutis que sinalizam declínio cognitivo. A coordenadora do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), Dra. Elisa de Paula França Resende detalha os sinais que merecem atenção especial. "Uma das principais alterações que a pessoa pode perceber é justamente a falha em comparecer à consulta. O paciente marca e falta, chega muito atrasado ou chega num horário muito anterior à consulta marcada. Outro sinal importante é a dificuldade de adesão à prescrição. Às vezes o Cirurgião-Dentista prescreve uma medicação ou tratamento, e o paciente não consegue tomar aquele remédio, não consegue fazer o que foi orientado, ou sai com aquela receita e quando volta, não lembra que levou para casa."
Esses padrões, quando recorrentes, justificam encaminhamento para avaliação neurológica. "Quando o profissional percebe dificuldade maior na adesão à prescrição ou nota que o paciente está com uma conversa diferente na consulta, às vezes com dificuldade de compreender os comandos, deve encaminhar ao neurologista para ter essa conversa em conjunto", orienta.
A especialista também destaca a relação bidirecional entre saúde bucal e cerebral: "Existem muitos estudos mostrando que a saúde bucal está relacionada à saúde cerebral. Dentes em mau estado de conservação, com infecções crônicas, estão associados a doenças neurodegenerativas. Essas infecções crônicas dentárias podem aumentar o risco de doenças como o Alzheimer."
Quando o comportamento desafia o atendimento
A psiquiatra membro da Comissão de Psicogeriatria da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Dra. Aline Berger, oferece uma perspectiva detalhada sobre os desafios neuropsiquiátricos no consultório odontológico e como superá-los. "Mesmo nos estágios iniciais, é comum o surgimento de sintomas como agitação, irritabilidade, ansiedade, apatia, desorientação, confusão, resistência a cuidados e distúrbios do sono", descreve. "No consultório, isso pode se manifestar como recusa em abrir a boca, movimentos bruscos, agressividade verbal ou física, incapacidade de permanecer sentado ou esquecimento do motivo da consulta."
Para lidar com esses desafios, a psiquiatra propõe estratégias específicas:
Planejamento prévio: obter informações dos cuidadores sobre o estágio da doença e comportamentos esperados;
Ambiente controlado: consultas curtas, preferencialmente pela manhã, em ambiente calmo;
Comunicação adaptada: instruções diretas, linguagem não verbal, comandos simplificados e repetitivos;
Presença do cuidador: como mediador afetivo e apoio comportamental
Flexibilidade terapêutica: priorizar prevenção e procedimentos minimamente invasivos;
Atenção aos sinais não verbais: dor odontológica pode se manifestar como agitação, recusa alimentar ou distúrbios do sono;
Considerações éticas contínuas: garantir consentimento adequado e, se necessário, acionar o representante legal.
"Em casos extremos, em que há risco de lesão ou recusa persistente, pode-se considerar o uso de sedação leve ou atendimento sob anestesia geral, com suporte multiprofissional", complementa. "Cuidar de um paciente com Alzheimer no consultório odontológico requer mais do que técnica — exige empatia, paciência e conhecimento clínico sobre os impactos neuropsiquiátricos da doença."
O impacto direto na qualidade de vida
A presença de lesões bucais não tratadas pode gerar reflexos sistêmicos e comportamentais importantes. A diretora da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) de São Paulo, a geriatra Dra. Claudia Suemoto enfatiza que a saúde oral deve ser entendida como parte inseparável do cuidado integral. "O impacto é grande. O paciente com demência em qualquer fase, mas principalmente na fase moderada e grave, que desenvolve problemas odontológicos como uma cárie ou lesão que cause dor, e essa lesão não é detectada, ela pode ser causa de agitação", alerta. "Processos infecciosos podem se disseminar e levar a quadros de pioras da agitação."
A geriatra reforça a necessidade de incorporar a Odontologia nos planos de cuidado: "A saúde bucal faz parte do cuidado integral do idoso. É importante que as visitas ao Cirurgião-Dentista sejam feitas de forma regular, que seja inspecionada a boca com certa frequência. Se o idoso tem menos autonomia, como um idoso com demência, isso deve ser orientado à família."
Ela destaca ainda o papel de toda a equipe: "Médicos, enfermeiros, fonoaudiólogos — todo mundo que lida com a saúde do idoso deve estar atento para visitas periódicas e o cuidado odontológico."
Preservando funções essenciais: a parceria com a fonoaudiologia
A colaboração entre Odontologia e fonoaudiologia é fundamental para preservar funções vitais como mastigação e deglutição. As fonoaudiólogas Dra Camila Lirani-Silva e Dra Thais Coelho Alves, da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia (SBFa), detalham como essa parceria se traduz em benefícios concretos. "O cuidado integrado é fundamental porque a mastigação e a deglutição dependem tanto da saúde oral quanto da coordenação dos movimentos. Pacientes com Alzheimer frequentemente apresentam perda dentária, próteses mal ajustadas ou incapacidade de manejar a prótese dentária, reduzindo a eficiência mastigatória e a formação e trituração do bolo alimentar", explicam.
A atuação é complementar e sinérgica: o Cirurgião-Dentista mantém dentes e próteses em bom estado, trata dor, infecções, xerostomia e sialorreia. O fonoaudiólogo avalia a função mastigatória e deglutitória, adapta consistências alimentares e ensina estratégias seguras. "Quando essas ações se somam, conseguimos restaurar a eficiência mastigatória, reduzir engasgos e diminuir o risco de pneumonia por aspiração, uma das principais complicações na doença de Alzheimer."
As especialistas orientam sobre sinais críticos que o Cirurgião-Dentista pode identificar:
- Dificuldade na deglutição da própria saliva, com acúmulo excessivo na cavidade oral;
- Resíduos alimentares persistentes nas bochechas, entre gengiva e bochechas ou sobre a língua;
- Relatos de tosse e engasgos com saliva, alimentos, líquidos ou medicamentos;
- Queixas de dificuldade na mastigação e trituração dos alimentos;
- Mudança na voz após a deglutição (voz "molhada");
- Comportamento de evitar determinados alimentos por dificuldade ou medo;
- Perda de peso não explicada.
"A boa saúde oral facilita o trabalho fonoaudiológico, e os exercícios e adaptações feitas pelo fonoaudiólogo tornam os ganhos odontológicos funcionais no dia a dia", ressaltam. "Outro ponto essencial é a educação dos cuidadores. Com treinamento adequado, eles conseguem manter a higiene oral, cuidar das próteses e aplicar técnicas de alimentação segura, prolongando a qualidade de vida e evitando complicações."
A abordagem transdisciplinar na prática
A Odontogeriatra e presidente da Câmara Técnica de Odontogeriatria do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CROSP), Dra. Denise Tibério, compartilha experiências práticas sobre como operacionalizar o cuidado integrado. "Trabalhar em equipe é gratificante. Muitas vezes, para que o planejamento odontológico seja executado, é necessária uma discussão de caso com a equipe", afirma. Ela exemplifica questões cruciais que emergem nessa integração: "Será que o paciente está compensado para o procedimento? Aí a importância da nutricionista e do geriatra — atenção a cirurgias. Será que o paciente possui disfagia? Importância da fonoaudióloga — atenção à moldagem para confecção de próteses. Os cuidadores são eficientes quanto à higiene do paciente? Nesse caso, todos os profissionais observam e trocam informações. Às vezes o paciente com Alzheimer não permite a higiene, o que pode dificultar nossa tomada de decisão quanto ao planejamento."
A especialista destaca a formação diferenciada do Odontogeriatra: "O Odontogeriatra está capacitado para essa conversa transdisciplinar, pois na especialização estuda Gerontologia, que é o estudo do envelhecimento. Com esse conhecimento de instrumentos de avaliação, o Odontogeriatra consegue uma conversa transdisciplinar."
Sobre protocolos nos estágios avançados, ela pondera: "Os idosos são singulares, assim sendo os protocolos são difíceis de existirem. Porém, há instrumentos que exibem o desconforto do paciente demenciado e quando se atua em equipe, os profissionais evidenciam esses sinais e buscam o profissional que leva conforto e dignidade ao paciente."
Construindo pontes entre especialidades
A psiquiatra, Dra. Aline Berger sintetiza os benefícios concretos da integração multiprofissional, destacando como essa colaboração transforma o cuidado: "A demência, especialmente o Alzheimer, é uma condição multifacetada que exige uma abordagem integrada. A colaboração entre especialistas é essencial para proporcionar um cuidado verdadeiramente centrado no paciente e na família."
Segundo ela, essa integração possibilita: 1) Detecção precoce de sintomas comportamentais que afetam diretamente o atendimento odontológico; 2) Planejamento de condutas individualizadas, como agendamento em horários mais tranquilos ou adaptação de procedimentos segundo o estágio da doença; 3) Alinhamento entre prescrições médicas e tratamentos odontológicos, prevenindo interações medicamentosas ou efeitos adversos como xerostomia, bruxismo ou risco cardiovascular; 4) Compartilhamento de informações essenciais sobre histórico clínico, preferências do paciente e respostas a estímulos.
"Outro ponto fundamental é o apoio ao cuidador, cuja saúde emocional impacta diretamente a adesão ao tratamento. Equipes interdisciplinares conseguem oferecer suporte estruturado à família, orientando sobre higiene bucal domiciliar, sinais de dor, mudanças de comportamento e uso de técnicas de dessensibilização e conforto", detalha.
A especialista acrescenta: "Em contextos mais delicados — como cuidados paliativos ou procedimentos sob sedação — essa articulação garante decisões éticas e compartilhadas, com base na autonomia, dignidade e bem-estar do paciente. Modelos interprofissionais bem estruturados demonstram resultados positivos: redução da sobrecarga familiar, menor número de internações hospitalares, melhora da funcionalidade e mais qualidade de vida para todos os envolvidos."
Perspectivas e caminhos para a prática colaborativa
A participação ativa do Cirurgião-Dentista na equipe multiprofissional representa uma evolução necessária e já em curso no cuidado ao paciente com Alzheimer. Como observa a Dra. Aline: "Integrar o Cirurgião-Dentista nessa rede de cuidado é um avanço necessário".
O desafio e a oportunidade para os profissionais de Odontologia residem em desenvolver competências que transcendem a técnica tradicional: comunicação efetiva com outras especialidades, conhecimento sobre as manifestações e progressão da demência, sensibilidade para identificar sinais precoces e habilidade para adaptar protocolos às necessidades individuais de cada paciente.
Em um cenário de envelhecimento populacional e aumento na prevalência de demências, o Cirurgião-Dentista que desenvolve essas habilidades não apenas amplia suas possibilidades de contribuição clínica, mas se fortalece como profissional indispensável na rede de cuidados. Sua atuação integrada contribui significativamente para a detecção oportuna de alterações cognitivas, prevenção de complicações sistêmicas, preservação da funcionalidade oral e, fundamentalmente, para a manutenção da dignidade e qualidade de vida daqueles que convivem com o Alzheimer e suas famílias.
Por Swellyn França