Odontologia - 25.07.2025
Do biofilme à inclusão: o papel da Odontologia no cuidado de pacientes com TEA
Estudos sobre microbiota oral abrem novas possibilidades de diagnóstico precoce, mas é na prática clínica e no acolhimento que a transformação começa

As conexões entre saúde bucal e saúde sistêmica vêm ganhando destaque em diferentes frentes da ciência — e, mais recentemente, têm despertado interesse também no campo do neurodesenvolvimento. Um estudo publicado na Archives of Oral Biology identificou diferenças significativas na composição microbiana da placa dentária de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) em comparação a crianças com desenvolvimento típico. Embora preliminar e baseado em uma amostra restrita, o trabalho reforça a hipótese de que a microbiota oral possa refletir características neurológicas — o que abre caminho para a triagem precoce e o aprofundamento de estratégias terapêuticas.
Para a professora titular da Disciplina de Patologia Oral e Maxilofacial da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP), Profa. Dra. Marina Gallottini — que coordena o Centro de Atendimento a Pacientes Especiais (CAPE) da FOUSP desde 2000 e o curso de Especialização em Odontologia para Pacientes Especiais da Fundação da Faculdade de Odontologia da USP —, os achados mais recentes são coerentes com uma tendência que ela acompanha de perto: “Estudos mais recentes têm revelado uma conexão relevante entre saúde mental e saúde sistêmica, destacando o papel da microbiota — incluindo o microbioma oral — em doenças e condições neurológicas, como doenças neurodegenerativas (Parkinson, Alzheimer), transtornos psiquiátricos como depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e, também, o Transtorno do Espectro Autista.”
Ao mesmo tempo, profissionais que atuam diretamente no atendimento odontológico de crianças com TEA destacam outro fator igualmente relevante: o impacto do cuidado clínico humanizado na qualidade de vida desses pacientes e de suas famílias. Unindo pesquisa, prática e acolhimento, a Odontologia tem muito a contribuir para uma abordagem mais ampla e integrada ao TEA — do biofilme ao comportamento, do diagnóstico ao vínculo.
Da pesquisa à clínica: o que já se sabe sobre a microbiota no TEA
As investigações envolvendo a cavidade oral como via potencial de marcadores para o TEA vêm ganhando corpo no Brasil. A professora da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE), Profa. Dra. Cristhiane Amaral, que é especialista em Odontopediatria e Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais, conduziu pesquisas em crianças com TEA e com Síndrome do X Frágil (SXF), com foco nos aspectos microbiológicos e salivares. “Observamos alterações significativas no perfil microbiano da cavidade bucal, além de comprometimentos nas características salivares, como a capacidade tampão, que estava reduzida. Isso contribui para um ambiente oral mais ácido e propício à desmineralização dentária”, relata.
No caso específico da SXF, a pesquisadora destaca: “Um dos principais achados foi a alta expressão dos genes reguladores VicRK e CovR da Streptococcus mutans, principal bactéria cariogênica. Esses genes estão relacionados à virulência, aderência e formação de biofilme. Observamos que os níveis de transcrição desses genes nos isolados de pacientes com SXF foram significativamente mais altos do que na cepa padrão ATCC, o que sugere um maior potencial de destruição tecidual.”
Além disso, a Dra. Cristhiane chama a atenção para a interação entre comportamento e fisiologia oral: “Crianças com TEA e SXF frequentemente apresentavam saliva com menor fluxo e menor capacidade tampão, o que aumenta o risco de cárie. Notamos alterações qualitativas na microbiota bucal, com aumento de microrganismos acidogênicos, especialmente em crianças com hábitos alimentares restritivos, uso prolongado de medicações e higiene bucal comprometida. Outro achado relevante foi a associação entre o comportamento da criança e a qualidade da saliva, sugerindo que fatores neurobiológicos e sensoriais podem influenciar não só a rotina de higiene, mas também aspectos fisiológicos da cavidade oral.”
A hipótese de que o microbioma oral possa atuar como biomarcador de TEA também é considerada plausível pela Dra. Cristhiane: “Já sabemos que o eixo microbioma-cérebro pode estar diretamente envolvido em diversos transtornos do neurodesenvolvimento, e a cavidade oral representa uma das principais portas de entrada microbiana do organismo. Portanto, faz sentido que alterações orais reflitam desregulações sistêmicas mais amplas.”
O potencial da triagem e os limites da validação
Apesar do entusiasmo, as pesquisadoras reforçam que ainda há um caminho a percorrer até que a microbiota oral possa ser incorporada como ferramenta auxiliar no diagnóstico. “Seria necessário padronizar os protocolos clínicos e laboratoriais para coleta, armazenamento e análise das amostras, especialmente em crianças pequenas e com comportamento atípico”, explica a Dra. Cristhiane. Ela também defende estudos longitudinais multicêntricos com amostras maiores e integração com fatores genéticos, comportamentais, imunológicos e metabólicos.
A Odontopediatra, Dra. Helenice Biancalana, mestre em Saúde da Criança e do Adolescente, concorda com essa visão. Ela acredita que, no futuro, a análise do biofilme oral poderá integrar a atenção odontológica voltada a crianças com deficiência, especialmente na faixa dos 3 aos 6 anos — considerada crítica para o diagnóstico precoce do TEA. “A idade média de diagnóstico é de 60 meses, mas muitos casos leves só são percebidos após o ingresso na escola. As atuais ferramentas de triagem, baseadas principalmente em avaliações subjetivas de professores e pais, ressaltam a necessidade de medidas objetivas mais sedimentadas.”
Dra Helenice destaca que o estudo publicado na Archives of Oral Biology contribui para a compreensão da conexão microbioma-cérebro e pode, no futuro, ajudar a melhorar a precisão do diagnóstico e os resultados da intervenção — desde que os biomarcadores bacterianos orais sejam validados cientificamente.
O olhar da clínica: possibilidades reais, desafios éticos
A Cirurgiã-Dentista especialista em Odontopediatria e em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais, Profa. Dra. Leda Mugayar, que é professora associada clínica e diretora da Clínica de Cuidados Inclusivos da Faculdade de Odontologia da Universidade de Illinois em Chicago (UIC) destaca que, na prática clínica, a coleta de biofilme em crianças com TEA é viável — desde que sejam respeitadas as especificidades sensoriais e comportamentais do paciente. “A hipersensibilidade sensorial, as alterações no processamento de estímulos táteis e orais, bem como os níveis de ansiedade frente a procedimentos clínicos, são fatores que precisam ser cuidadosamente considerados”, orienta.
Ela recomenda estratégias como abordagens lúdicas, dessensibilização prévia, envolvimento dos cuidadores e preparo técnico e emocional da equipe. “O exame deve ser o menos invasivo possível, realizado em ambiente preparado para atender às necessidades da criança e conduzido por equipe capacitada não apenas na técnica, mas também no acolhimento e manejo desses pacientes.”
Segundo a Dra Leda, é comum observar manifestações bucais como acúmulo de biofilme, gengivite, bruxismo, alterações no padrão de mastigação e comprometimento da higiene oral. “Esses quadros frequentemente se associam à seletividade alimentar, ao uso prolongado de determinados medicamentos e a dificuldades na escovação autônoma ou supervisionada. É plausível supor que determinados perfis microbiológicos possam estar associados às características comportamentais e clínicas desses pacientes.”
Formação, acolhimento e impacto na qualidade de vida
A atuação do Cirurgião-Dentista — especialmente do Odontopediatra — é decisiva tanto para o cuidado em saúde bucal quanto para a atenção precoce a sinais sugestivos de TEA. “O profissional deve estar preparado para identificar esses sinais e atuar sempre em colaboração com outros profissionais da saúde, como pediatras, neuropediatras, psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais e nutricionistas”, destaca a Dra. Helenice.
Ela defende a adoção de práticas que envolvam comunicação clara e visual, ambientes acolhedores, técnicas de manejo comportamental, capacitação contínua da equipe e, quando necessário, uso criterioso de sedação. “Ao implementar essas melhorias, o atendimento odontológico a pacientes autistas pode se tornar mais inclusivo, eficaz e seguro, promovendo a saúde bucal e a qualidade de vida desses indivíduos.”
A experiência do CAPE reforça essa perspectiva. Dra Marina conta que, desde sua fundação em 1989, o serviço se dedicou ao atendimento odontológico de pessoas com doenças crônicas não transmissíveis (doença cardiovascular, diabetes, neoplasias etc.) e condições neurológicas. “Naquele período, ainda não existia o conceito de ‘espectro autista’. O termo começou a ser utilizado de forma mais ampla a partir de 2013, com a publicação do DSM-5. Passamos a receber um número cada vez maior de crianças com TEA trazidas por seus pais porque elas não colaboravam com os Cirurgiões-Dentistas que atendem crianças típicas. Tínhamos, e ainda temos, uma limitação importante quanto ao encaminhamento de pacientes não colaboradores para anestesia geral no Hospital Universitário (HU). Acreditamos que a melhor solução seja conquistar a colaboração do paciente. Fomos aprimorando nossas técnicas e, com estímulos sensoriais e material estruturado, conseguimos transpor parte desta importante barreira.”
Recentemente foi criado no CAPE, conforme a Dra Marina, com parceria da LAOHA e da Colgate, uma sala odontológica sensorial. “Estamos computando os resultados, mas já adianto que eles são super positivos! Os familiares frequentemente nos relatam mudanças comportamentais observadas nos filhos durante ou após o tratamento odontológico. Algumas dessas mudanças estão, sim, relacionadas à eliminação de dor ou desconforto, mas nem todas. Há efeitos que parecem ir além da simples resolução clínica. Do ponto de vista da família, há um acolhimento verdadeiro: os pais se sentem menos impotentes, percebem que sua ação está sendo útil e que está promovendo bem-estar para seus filhos.”
Ciência, prática e acolhimento: uma integração necessária
No Brasil, o primeiro censo demográfico do IBGE que incluiu a identificação de indivíduos com TEA foi realizado em 2022 e identificou 2,4 milhões de pessoas com diagnóstico de TEA, o que corresponde a 1,2% da população brasileira — sendo 1 em cada 38 crianças na faixa etária de 5 a 9 anos. “O desafio central é proporcionar uma formação acadêmica mais sólida para os Cirurgiões-Dentistas, que inclua o aprendizado, o contato e o manejo de pessoas com TEA ainda na graduação. O profissional que recebe esse tipo de formação se torna um verdadeiro agente transformador em saúde. Além de incluir essa parcela significativa da população no atendimento odontológico diário, ele estará mais capacitado para identificar sinais sugestivos de TEA em crianças ainda não diagnosticadas, podendo encaminhá-las para avaliação médica ou psicológica especializada — contribuindo assim para o diagnóstico precoce e a instituição oportuna do cuidado interdisciplinar”, aponta a Dra Marina.
O campo está aberto — e a Odontologia tem muito a contribuir, seja como parceira da pesquisa, seja como protagonista no cuidado.
Por Swellyn França