Odontologia - Câncer de cabeça e pescoço: diagnóstico precoce e reabilitação dependem da integração entre Odontologia e Medicina

Odontologia - 16.07.2025

Câncer de cabeça e pescoço: diagnóstico precoce e reabilitação dependem da integração entre Odontologia e Medicina

Do diagnóstico à reabilitação, o Cirurgião-Dentista desempenha papel estratégico no cuidado ao paciente com câncer de cabeça e pescoço

A principal barreira ao diagnóstico precoce não reside mais, predominantemente, no comportamento do paciente, mas na limitada capacitação dos profissionais de saúde para reconhecer manifestações clínicas sugestivas de câncer
A principal barreira ao diagnóstico precoce não reside mais, predominantemente, no comportamento do paciente, mas na limitada capacitação dos profissionais de saúde para reconhecer manifestações clínicas sugestivas de câncer

Apesar dos avanços nas campanhas de conscientização e no acesso aos serviços de saúde, o diagnóstico precoce do câncer de cabeça e pescoço ainda esbarra em obstáculos persistentes. A atuação do Cirurgião-Dentista — desde o reconhecimento clínico das primeiras manifestações até a reabilitação funcional do paciente irradiado — é essencial para modificar esse cenário. Mas, para isso, é preciso garantir formação adequada, protocolos bem definidos e fluxos de atendimento integrados com os demais níveis da rede.

Segundo o Médico Cirurgião de Cabeça e Pescoço, Prof. Dr. Luiz Paulo Kowalski, que é diretor do Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Otorrinolaringologia do AC Camargo Cancer Center e professor livre-docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o atraso diagnóstico do câncer de boca — e de outras neoplasias de cabeça e pescoço — é um fenômeno multifatorial, cuja dinâmica tem se modificado ao longo do tempo no Brasil. “Até o final do século XX, diversas evidências apontavam que a principal causa do retardo no diagnóstico estava relacionada à demora do próprio paciente em buscar atendimento médico. Essa conduta era frequentemente atribuída à baixa percepção de risco, ao desconhecimento dos sinais e sintomas iniciais da doença, bem como à negligência frente a manifestações clínicas precoces, que podiam ser ignoradas por vários meses.”

Contudo, segundo Dr. Kowalski, esse cenário vem evoluindo. “Observa-se certa melhora no acesso aos serviços de saúde, especialmente nos grandes centros urbanos. Atualmente, pacientes que apresentam sinais e sintomas iniciais frequentemente procuram médicos ou Cirurgiões-Dentistas da atenção primária. No entanto, muitos desses profissionais ainda demonstram pouca familiaridade com os sinais precoces das neoplasias de cabeça e pescoço, frequentemente interpretando-os como processos inflamatórios ou infecciosos autolimitados. Como consequência, não é incomum que esses pacientes consultem diversos profissionais antes que seja levantada a suspeita diagnóstica adequada”, alerta o especialista.

Essa limitação no reconhecimento dos primeiros sintomas também é observada pelo especialista em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial (CTBMF), com atuação em ambiente hospitalar privado, Dr. Sidney Rafael das Neves. Ele afirma que as principais dificuldades no diagnóstico primário estão diretamente relacionadas ao reconhecimento de manifestações precoces e, muitas vezes, sutis da doença. “Feridas na boca que não cicatrizam por mais de duas semanas, dor de garganta prolongada, dificuldade para engolir, rouquidão persistente ou nódulos no pescoço precisam ser, primeiramente, diagnosticados. Porém, às vezes são subestimados ou atribuídos a condições benignas, atrasando o diagnóstico inicial”, explica.

Para o Dr. Kowalski, a principal barreira ao diagnóstico precoce não reside mais, predominantemente, no comportamento do paciente, mas na limitada capacitação dos profissionais de saúde para reconhecer manifestações clínicas sugestivas de câncer. Essa deficiência estaria relacionada à escassez de conteúdo específico sobre oncologia de cabeça e pescoço nas grades curriculares da maioria das escolas médicas e odontológicas do país.

Dr. Sidney também aponta que os próprios pacientes, mesmo quando alertados, podem não priorizar a realização de exames complementares e biópsias, o que contribui para o retardo no diagnóstico. Além disso, a difícil adesão à suspensão de hábitos relacionados ao tabagismo e etilismo, frequentemente associados ao estilo de vida e prazer pessoal, também interferem na prevenção e controle da doença.

Diante desse cenário, o Dr. Kowalski defende que as estratégias de enfrentamento do atraso no diagnóstico devem envolver três eixos integrados:

  1. A continuidade de ações educativas dirigidas à população, com linguagem acessível e foco na identificação de sinais de alerta;
  2. O aprimoramento da formação e capacitação contínua dos profissionais da atenção primária, médicos e Cirurgiões-Dentistas, de modo a aumentar sua capacidade de suspeição clínica e estabelecer senso de urgência;
  3. A organização eficiente da rede assistencial, garantindo fluxos ágeis para o encaminhamento oportuno aos serviços de referência secundária e terciária.

Rede articulada e reabilitação: o cuidado não termina no diagnóstico

Além da detecção precoce, a atenção ao paciente com câncer de cabeça e pescoço exige uma rede articulada para garantir continuidade no cuidado. Isso inclui o preparo pré-tratamento e, especialmente, a reabilitação funcional. “No Brasil, a relação íntima de duas especialidades odontológicas com atuação direta hospitalar — CTBMF e Odontologia Hospitalar — já mostra excelentes resultados e deve ser fortalecida em todas as etapas necessárias ao reestabelecimento do indivíduo na sociedade”, aponta Dr. Sidney.

Ele destaca que a atuação conjunta com a Fonoaudiologia, amplamente inserida nos serviços de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, tem se mostrado essencial. “Com os diversos avanços tecnológicos, principalmente relacionados à confecção de modelos 3D e materiais reconstrutivos customizados — que podem ser produzidos sob medida, considerando exatamente o defeito ósseo apresentado —, conseguimos melhorar as condições gerais do paciente, auxiliando na devolução de funções importantes do sistema estomatognático.”

Apesar dos avanços, ele adverte que o maior desafio está na disponibilidade desses materiais, cujo custo elevado dificulta o acesso tanto no serviço público quanto no setor suplementar. A liberação e incorporação de novas tecnologias ainda dependem de processos burocráticos extensos, o que pode comprometer a agilidade do atendimento.

Mas os desafios no cuidado odontológico ao paciente oncológico vão além da reconstrução facial. As complicações decorrentes da radioterapia impõem atenção constante à cavidade oral — antes, durante e após o tratamento. É nesse ponto que a atuação técnica do Cirurgião-Dentista se mostra indispensável para garantir conforto, adesão ao tratamento e sucesso reabilitador.

Atenção integral: complicações orais e a atuação do Cirurgião-Dentista

Entre os efeitos adversos do tratamento oncológico, a mucosite oral é uma das complicações mais graves em pacientes submetidos à radioterapia associada ou não à quimioterapia, comprometendo significativamente a qualidade de vida e podendo levar à interrupção do tratamento.

Para o Cirurgião-Dentista do Instituto Nacional de Câncer (INCA), mestre em Engenharia Biomédica pela UNIVAP e doutor em Oncologia pelo INCA, Dr. Héliton Spíndola Antunes, o uso do laser de baixa potência (fotobiomodulação) deve ser indicado com base em critérios clínicos como o campo de radiação, grau de dor (geralmente avaliado por escalas visuais), presença de úlceras, dificuldade de alimentação e impacto negativo na fala e deglutição. O início precoce dos sintomas e a rápida progressão das lesões também reforçam a necessidade dessa intervenção.

Segundo ele, o uso do laser contribui para reduzir a incidência, gravidade e duração da mucosite oral, aliviando a dor, promovendo a cicatrização das úlceras e, consequentemente, permitindo a continuidade do tratamento oncológico sem atrasos significativos ou necessidade de ajustes de dose — o que pode impactar positivamente nos resultados terapêuticos.

Dentes irradiados: riscos invisíveis que exigem vigilância

A radiação afeta não apenas as mucosas, mas também pode comprometer a integridade dos dentes. A Cirurgiã-Dentista, Dra. Elza Maria de Sá Ferreira, mestre em Odontopediatria pela Universidade São Leopoldo Mandic-Campinas e doutora pela Universidade Cruzeiro do Sul-SP, com atuação na assistência odontológica a pacientes oncológicos e em pesquisas sobre os efeitos da radioterapia, ressalta que alterações estruturais podem ocorrer mesmo em esmalte dentário aparentemente saudável, na ausência de cárie. “O esmalte dentário decíduo sadio, após radioterapia, apresentou perda significativa do conteúdo orgânico”. Em dentes permanentes, estudos recentes mostram que as alterações podem estar associadas também à hipossalivação, além da qualidade da dieta e da higiene bucal do paciente.”

Como medidas preventivas, ela recomenda protocolos direcionados aos cuidados dentários: higiene bucal rigorosa, dieta não cariogênica, uso de creme dental com flúor, aplicação de verniz fluoretado a cada seis meses e visitas periódicas ao Cirurgião-Dentista.

Materiais restauradores: escolhas que fazem diferença

Além da atenção às estruturas dentárias, o sucesso da reabilitação em pacientes irradiados depende também da escolha criteriosa dos materiais restauradores, considerando as alterações provocadas pela radiação e o novo ambiente bucal do paciente. A escolha clínica deve considerar as alterações estruturais do esmalte e dentina, a diminuição do fluxo salivar e o aumento do risco de cárie secundária. Entre os materiais preferenciais estão:

  • Cimentos de ionômero de vidro, indicados para restaurações cervicais e pequenas cavidades pela adesão química ao dente e liberação de flúor;
  • Compômeros, que combinam propriedades de resinas e ionômeros de vidro, unindo estética à liberação de flúor;
  • Resinas compostas, que podem ser utilizadas desde que associadas a sistemas adesivos de alta performance e preferencialmente com baixa viscosidade em áreas de pouca retenção mecânica;
  • Coroas totais metálicas ou metalocerâmicas, recomendadas para dentes muito destruídos, com preparo minimamente invasivo.

É fundamental priorizar procedimentos minimamente invasivos, uso de isolamento absoluto e acompanhamento clínico frequente. O sucesso da reabilitação oral em pacientes irradiados depende da colaboração entre paciente, dentista e equipe multidisciplinar — além de vigilância clínica contínua para substituição oportuna de restaurações defeituosas.

Um ciclo que começa — e continua — com o Cirurgião-Dentista

A abordagem odontológica do câncer de cabeça e pescoço vai muito além da prevenção. Como apontam os especialistas ouvidos nesta matéria, o Cirurgião-Dentista deve estar preparado para identificar as manifestações clínicas precoces da doença, orientar o paciente, atuar no preparo bucal antes da radioterapia ou cirurgia, prevenir e tratar complicações como a mucosite, e conduzir a reabilitação funcional de maneira individualizada.

Para isso, é necessário reforçar a presença do tema nas formações universitárias, promover capacitação técnica continuada, estimular o trabalho interdisciplinar e qualificar os fluxos de referência e contrarreferência na rede assistencial.

“A integração estruturada entre Medicina e Odontologia, baseada em capacitação, comunicação e protocolos bem definidos, é um passo fundamental para melhorar os desfechos clínicos e reduzir a mortalidade por câncer de cabeça e pescoço no Brasil”, finaliza o Prof. Dr. Luiz Paulo Kowalski.

Por Swellyn França